Quicabo - Angola

Quicabo - Angola
Foto de Vasco D'Orey, montagem de Garcia Ferreira

Encontro em Castro Daire

FOTO DE FAMILIA

FOTO DE FAMILIA

17 ABRIL 1971

Hoje, 17 de Abril de 2010, comemoramos 39 anos do dia em que partimos para Angola.
Para todos os Camaradas que neste dia viveram emoções difíceis de resumir em meia dúzia de palavras, quero deixar um abraço bem forte de solidariedade e amizade.
Garcia Ferreira

COUVELHA - A Vida... para além de Angola

Camaradas,


Começo esta crónica a dar os PARABÉNS ao Soares Ferreira pela forma como nos recebeu na sua terra, excelente almoço (por certo concordarão comigo que foi dos melhores que já saboreámos nestes nossos encontros), servido com muita qualidade e profissionalismo.
Fiquei extremamente sensibilizado com um aspecto que de certeza passou despercebido a muitos de vós, o tradicional bolo (diga-se desde já de excelente qualidade) alusivo ao Batalhão, estava decorado com o tipo e logótipo que abre esta página, agradeço a quem teve esta iniciativa (por certo o Soares Ferreira), que me tocou particularmente.



Pois é Companheiros, o dia D chegou bonito, com muito sol, para animar mais um encontro anual dos Camaradas do Batalhão de Caçadores 3838. A romaria em direcção a COUVELHA começou bem cedo, de todos os cantos de Portugal foram chegando os Companheiros e amigos para mitigar as saudades da longa ausência de um ano passado.
Para os Companheiros da Companhia de Caçadores 3340 este foi um encontro bonito, revimos dois Camaradas que nunca tinham comparecido a estes encontros, falo do RICO e do MAGALHÃES, obrigado pela vossa reentrada nesta grande família.






Abraçados os presentes, lamentadas as ausências, seguimos para a Igreja de Couvelha onde o nosso padre ZÉ celebrou a tradicional missa.





Durante o almoço sempre bem regado com o espumante “bruto” da região, embora para aqueles que iriam conduzir se aconselhasse moderação no seu consumo, foram vividas as habituais manifestações de alegria por estarmos de novo reunidos, recordamos vivências passadas, comentamos episódios bons e menos bons e até fizemos algumas confidências.



O Oliveira foi-nos passando a mensagem de que o ex-alferes Pereira gostaria que o próximo encontro se realiza-se na sua terra, CASTRO D’AIRE, ficamos a aguardar a confirmação desta informação assim como os seus pormenores.

Seguidamente tomou a palavra o nosso camarada Silva que mais uma vez nos brindou com os seus dotes oratórios e que dirigiu algumas palavras sobre os Camaradas que já não se encontram neste mundo mas que continuam connosco para sempre, foram comoventes os versos dedicados ao saudoso Camarada Virgílio que desde sempre esteve nestes nossos encontros, realizando grande parte deles e que foi um dos motivadores para que o Soares Ferreira se encarregasse do encontro deste ano, que descanse em paz junto de todos os Companheiros que já nos deixaram.

Por fim usou da palavra o nosso Comandante que como sempre realçou o prazer de estar presente, embora como o próprio afirmou já com algumas dificuldades, mas que espera estar no nosso seio em muitos mais. Obrigado pela sua presença, carinho e amizade, pode acreditar que todos lhe retribuímos em dobro.



Feita a vindima, lavados os cestos e o lagar, regressámos a casa satisfeitos pelo encontro vivido.

Grande abraço para todos os que disseram sim e também para aqueles que por um motivo qualquer não estiveram presentes.

Garcia Ferreira


O MEU PELOTÃO


Era o meu pelotão o terceiro da C.Caç 3340, pertencente ao B.Caç 3838, que tinha como comandante o Alf. Mil.  Magalhães, secundado pelos furriéis Paim Vieira e Lourenço, sendo também composto por alguns cabos, como o Coelho e o Carvalhito (este mais tarde transitou para a messe de sargentos), e por vários soldados/praças, alguns, numa pequena percentagem, sendo originários de Angola.
 
Embora organicamente cada pelotão de combate (também se designando por grupo de combate),  devesse ser formado por um alferes, 3 furriéis,  3 a 4 cabos e o restante por praças, num efectivo total de cerca de 33 militares, o certo é que a generalidade das companhias de caçadores iam incompletas para os vários teatros de guerra. Só já no terreno de actuação é que eram complementadas com os efectivos em falta, normalmente incorporando tropas/praças, naturais do território.
 
Quanto aos sargentos, raras eram as companhias operacionais que, nos seus 4 pelotões, tinham mais que 2 furriéis por cada um, para já não falarmos das patentes superiores, nomeadamente a nível de sargentos, tenentes e majores do quadro, isto é, não milicianos, dado a escassez de militares, desse tipo, para preencherem os respectivos lugares orgânicos.

Mas voltando ao meu pelotão, também ele foi complementado com 8 praças, todas de raça negra, que também deram o seu melhor e o seu  prestimoso contributo para que, no final da nossa comissão, todos pudéssemos dizer "dever cumprido". É certo que, por vezes, esta tropa negra se revelava menos colaborante, nomeadamente quando, em acções estritamente militares, se recusavam a incendiar as palhotas, tabancas ou os aquartelamentos no mato, ou quando se procedia à destruição das lavras e culturas do IN.

Tal atitude já na altura era facilmente desculpável, por compreensível, dados os laços de sangue, e até de parentesco, que eventualmente poderiam ligar os contendores opositores entre si. Com provável certeza, cada um dos nossos soldados negros, agora e por força de circunstancialismos diversos, tinha um amigo, um parente, quiçá um familiar, que guerreava no mato, obrigado ou não, contra as nossas tropas.  Não obstante, eles estavam do mesmo lado da nossa barricada. Como poderíamos,  então, deixar de não ser sensíveis a este antagonismo vivido diariamente por cada um dos nossos soldados negros?!

De qualquer modo, foi no seio deste maravilhoso e dedicado grupo de combate que vivi dos mais gratificantes momentos da minha juventude. Numa altura em que se construíam os primeiros projectos de vida, o serviço militar obrigatório consistia, para qualquer jovem, num interregno forçado, numa barreira intransponível impossível de contornar, quando não num colapso total quando nos atingia o infortúnio da morte.

Para que conste, e em honra desses valorosos soldados do 3º pelotão da 3340, aqui se mencionam os seus nomes (os ainda não esquecidos, porque infelizmente o nome de alguns já o tempo conseguiu esquecer). De uns e de outros fica a grata memória das suas pessoas e a eterna gratidão por me acompanharem nesse dito interregno de nossas vidas: Alf. Mil. Magalhães, Quadrado, Ribeiro, Gonçalves, Coelho, Furriel Lourenço, Mónica, Carvalho, Carvalhito, Soares, Bernardo, Furriel Paim Vieira e os outros.

Lourenço, ex-furriel da 3340.

NAS LAVRAS DO QUIJOÃO

Naquele dia o despertar foi mais cedo, cerca das 4 horas da manhã. O cozinheiro preparara o pequeno-almoço para o 3º e 4º pelotão da Caç. 3340, à base de café com leite, pão e manteiga. Depois desta pequena refeição, as dos dois dias seguinte seriam rações-de-combate.
 
A refeição ligeira foi tomada em silêncio,  conjuntamente com todos os graduados, apenas se ouvindo o som característico do gerador a gasóleo que fornecia a electricidade a todo o aquartelamento,
 àquela hora ainda adormecido.

Ainda dentro do quartel, à beira do depósito da água, subimos para as viaturas que nos aguardavam, uma berliet e vários unimogs, tendo como destino mais uma "operação", desta vez para os lados do QUIJOÃO, uma zona de guerra considerada relativamente pacífica.   
 
Situava-se o nosso objectivo a algumas boas dezenas de quilómetros de Quicabo, já em plena floresta-galeria dos Dembos, por onde circulava, em sucessivos meandros, o rio Dange até chegar às Mabubas, local onde fora construída uma barragem eléctrica, indo depois desaguar no Atlântico, por alturas do Cacuaco.

Entretanto já abandonáramos as viaturas, que haviam regressado ao quartel, passando a calcorrear a picada, com todas as cautelas, rumo ao previsto objectivo, por entre capim alto e ainda viçoso, entremeado de árvores rasteiras e esparsas, até chegarmos à zona em que a savana deu lugar á floresta tropical.

Entrados na mata densa, em "bicha de pirilau" que se estendia por várias centenas de metros, logo perdemos o trilho por onde seguíamos, obrigando o homem, que seguia na frente, a abrir caminho á catanada, de forma a abrir passagem por entre o emaranhado de lianas e pequenas plantas que cresciam, a custo, debaixo daquele extenso e quase impenetrável dossel, formado pelas copas das árvores que almejavam alcançar a luz do sol.

Subíamos a custo uma ravina quando, de repente, toda a extensa coluna, qual baralho de cartas em dominó, se agachou apressadamente, começando pelo princípio até chegar até ao último homem da coluna. Sucedera que o guia,  um ex-guerrilheiro, que encimava a coluna, munido de uma pequena verdasca,  detectara um invisível "fio de tropeçar", atado a um pequeno arbusto, que continuava, perpendicularmente ao trilho, para o interior da mata.
 
Na altura ia integrado na coluna um alferes, que julgo chamar-se Fernandes, que estava a tirar o curso para capitão  (um curso acelerado para obtenção de comandantes de companhia), que se dispôs de imediato a apurar onde é que o fio-de-tropeçar ia dar,  se a uma mina anti-pessoal ou a uma armadilha para animais.
 
Cauteloso como se impunha, o dito alferes seguiu vários metros o fio até que, inopinadamente, se depara com um guerrilheiro encostado a uma árvore, ainda dormitando sossegadamente.  Tão inesperado encontro causou entre ambos um corrupio de calafrios, sendo o guerrilheiro de imediato dominado, com a advertência de que não poderia fazer qualquer barulho ou tentasse fugir, caso em que seria de imediato abatido.
 
O guerrilheiro, um jovem rondando os 18 anos,  desarmado, estava de vigia num posto avançado, sintoma de que o acampamento que procurávamos já não estaria longe, e, sobre a árvore frondosa em que se encostara e dormia, pendia um enorme latão que seria percutido, por meio de um engenhoso sistema de alavancas, logo que alguém tropeçasse no fio que atravessava o pequeno trilho.

Prosseguida a marcha, agora mais acelerada de forma a alcançarmos rapidamente o objectivo, cientes de que conseguíramos não ser detectados e que o "novo" guia, depois de uma rápida "lavagem ao cérebro", nos conduziria lá sem qualquer percalço,  alcançámos, em cerca de duas horas,  uma clareira na floresta, o nosso suposto objectivo.
 
Diante de nós, ainda acobertados pela mata,  estendia-se uma vasta clareira, que descia em declive até a um pequeno riacho, para logo continuar a subir na outra margem até à outra orla da floresta. Esta clareira, assemelhando-se a uma pequena ilha na imensidão do denso arvoredo, teria cerca de 500 metros de comprido, ao longo do regato, e cerca de 400 metros de largura, divididos entre as duas margens.
 
Na margem oposta do ribeiro trabalhavam umas mulheres nas lavras e, de quando em quando, viam-se dois ou três guerrilheiros armados que, aparentemente, vinham despreocupadamente buscar água ao ribeiro para logo retrocederem e se sumirem na orla da mata.

Foi então que foi decidido montar um golpe de mão aos guerrilheiros, para o que se formaram duas secções, uma de cada pelotão, que, ocultadas pela mata,  contornariam a clareira para aparecerem,  de surpresa, por detrás dos guerrilheiros e os apanharem à mão ou, caso estes tentassem fugir, fossem encaminhados para a boca do lobo ou seja que se introduzissem na mata onde se encontrava emboscada a restante tropa.

Na execução desta estratégia,  iniciou-se o previsto envolvimento contornando a orla da mata, após o que aparecemos de surpresa por detrás dos guerrilheiros, abrindo de imediato fogo para intimidação. Estes então correram na direcção do ribeiro e iniciaram a subida para a orla da mata, onde eram aguardados pela nossa tropa.
   
Após o enorme fogaçal que se seguiu, donde teriam necessariamente resultado algumas baixas ao IN, iniciámos então,  e a corpo aberto, a travessia da clareira em direcção às nossas tropas, cientes de que teria havido alguns capturados e mortos, embora se estranhasse aquele fogo nutrido, nomeadamente por o mesmo pôr em risco a vida dos camaradas que se encontravam no meio das lavras.

Qual não foi o nosso espanto ao sabermos que a tropa emboscada não dera um único tiro, pois todo aquele tiroteio provinha afinal de um numeroso grupo de guerrilheiros, o qual se havia também emboscado, mesmo ao lado da nossa tropa, com a intenção de capturar ou matar os militares agressores.

Em face deste inusitado desfecho bélico, de que felizmente não resultaram quaisquer baixas ou feridos, ficou-se sem saber se tal fora mera obra do acaso ou da sorte, ou se a presença da nossa tropa só foi denunciada após o inicio do tiroteio,  dando assim origem a que o IN se retirasse apressadamente.

O certo é que a presença da nossa tropa fora detectada na zona, assim se gorando o efeito surpresa, inviabilizando um maior sucesso operacional.

Lourenço, ex-furriel da 3340

AINDA AS SETE CURVAS...

Com referência ao texto da autoria do amigo ANICETO PIRES, vou tentar complementá-lo.

Efectivamente no dia anterior, ao cair da tarde e quando já se anunciava a noite, logo após a ceia, tomada na messe dos sargentos, viemos, um grupo de amigos, para a respectiva esplanada:  um dos furriéis que com o seu pelotão, oriundo do Caxito, reforçava a CAÇ.3340, eu  próprio e mais dois furriéis.
Enquanto o furriel do Caxito, de quem não recordo o nome, pegava na sua viola e dedilhava algumas canções, nós outros bebericávamos uns whiskies e íamos deixando passar o tempo, absortos nas melodias que íamos ouvindo.
O dito furriel do Caxito, quando se fartou da viola e da nossa pouca atenção, entrou nas nossas conversas que, resumidamente, versavam sobre os 24 meses que estavam prestes a findar, ao invés dos seus poucos meses ainda de mato. Nós éramos uns sortudos, porque no dia seguinte completávamos a nossa comissão em Quicabo, enquanto ele e o seu pelotão ainda lá continuariam a batê-las.
Já noite bem entrada, despedimo-nos com um sorriso de gozo nos lábios, lembrando ao ainda maçarico que também chegaria o dia, para ele, do final da sua comissão. Mal sabíamos nós que aquela noite também seria, para ele, a sua última noite.
Chegado novo dia, cada pelotão regressou às suas tarefas diárias, sendo que ao pelotão do Caxito, chefiado pelo comparsa do dia anterior, foi incumbido de ir escoltar uma coluna da JAEA.
Tratando-se do último dia dos "velhinhos", o Feijão, pediu para ir integrar o pelotão do Caxito, substituindo o respectivo "transmissões", pois não queria regressar ao "puto" sem pegar numa arma e não ter saído do "arame". E lá foi ele, todo garboso, integrado num pelotão de combate.
 No regresso a Quicabo, na zona das SETE CURVAS, o nosso amigo Feijão e toda a tropa sofreu uma forte e mortífera emboscada.  Do primeiro unimog morreu logo o respectivo furriel, o amigo da noite anterior, que ficou sentado ao lado do condutor, dois soldados de negros,  não aparecendo o condutor, que era o Damas, não se sabendo do seu paradeiro. Os restantes mortos aconteceram no segundo unimog, que vinha a meio da coluna, não chegando a entrar na zona de morte o terceiro unimog. A força do combate teve o seu epicentro na zona onde seguia o unimog do transmissões Feijão, onde este e o seu colega enfermeiro travaram duro duelo com os atacantes, até chegarem reforços que os pôs em fuga.   É de notar que o dito pelotão, sendo formado por tropas oriundas de Angola (negros), à excepção do seu comandante (furriel), dos condutores, do enfermeiro e do transmissões, pouca ou nenhuma resistência terão oferecido.
De imediato foi pedida a intervenção da força aérea que disponibilizou 4 helicópteros,  sendo um héli-canhão.  Foi nestes helicópteros que duas secções de combate,  chefiadas pelos furriéis Rico e Lourenço,  do 1º e 3º pelotão da 3340, iniciaram então uma perigosa caça ao homem, nomeadamente procurando interceptar o grupo inimigo e, eventualmente, resgatar o condutor DAMAS.
Do ar, apenas vislumbrámos, durante dois dias, algumas fogueiras no meio da floresta, tabancas e lavras, mas do inimigo nem vivalma. Ficámos pois sem saber o que teria acontecido ao DAMAS, se era vivo ou morto. Só mais tarde, já depois do 25 de Abril, soubemos que havia sido capturado (o único), que ouviu perfeitamente os helicópteros que andavam à sua procura e que, em cerca de três dias, terá chegado ao Congo, em marcha forçada, tendo sido posteriormente libertado na troca de prisioneiros.
Assim terminou a nossa comissão, em Quicabo, de uma forma algo inesperada, deixando-nos a todos com uma profunda tristeza em vez da habitual incontida alegria, velando os mortos na capela de Quicabo e deixando ainda mais receosos, do seu futuro, aqueles que nos vieram render.

Lourenço/furriel da C.Caç. 3340