Quicabo - Angola

Quicabo - Angola
Foto de Vasco D'Orey, montagem de Garcia Ferreira

Encontro em Castro Daire

FOTO DE FAMILIA

FOTO DE FAMILIA

FAZENDA DO MARGARIDO




No MARGARIDO estava estacionado um destacamento militar, normalmente apenas um pelotão reforçado, pertencente à companhia da Fazenda Maria Fernanda, a 3342. Na época de maior actividade agrícola, quando o perigo de vir a sofrer ataques do IN era maior, coube ao meu grupo de combate (o 3º da 3340, sedeada em Quicabo) ir reforçar esse destacamento.


A distância entre Quicabo e o Margarido não era muita, talvez uns 50 km, mas na época das chuvas levava-nos meio-dia, quando não o dia todo, a lá chegar. Saía-se de Quicabo em direcção a Balacende, pela estrada então ainda não asfaltada e que seguia na direcção da Beira Baixa e de Nambuangongo. Logo a seguir a Balacende, onde se situava a outra companhia do batalhão, a 3341, tomávamos uma espécie de picada até chegarmos ao Margarido.

Depois de entrarmos na savana, entremeada de algumas árvores de pequeno porte, onde pastavam corpulentas pacaças e se viam, fugindo apressadamente do ruído dos unimogs, tímidos veados ou barulhentos javalis, logo deparávamos com os altaneiros e muito temidos Palacaças.

Os Palacaças eram dois enormes morros de pedra calcária, distanciados entre si de apenas umas centenas de metros, que se destacavam na paisagem como duas temíveis e sempre vigilantes sentinelas. Postados mesmo junto à picada, assemelhavam-se a dois enormes e imbatíveis guerreiros, a que a cor da desnuda pedra esbranquiçada, sobressaindo da densa mata envolvente, lembrava uma bem urdida cota de malha que lhes protegia o corpo. Os musculados corpos fantasmagóricos terminavam em duas enormes cabeças de onde sobressaíam uns tufos de cabelos ralos, constituídos por pequenas árvores que teimavam em vegetar na pouca terra que se acumulava no cocuruto dos morros.

À medida que nos íamos aproximando destes dois horríveis mostrengos, crescia em cada um de nós uma ânsia e medo, por vezes pavor, de que das suas entranhas saísse inopinadamente um ataque do IN, mortífero e certeiro. Até à pedrada, se outros meios não tivessem, nos atingiriam do cimo dos Palacaças, sem possibilidade de serem sériamente incomodados, tal a altura desses morros e a sua proximidade da picada.

Por vezes nem a própria picada enxergávamos, completamente alagadas devido às chuvas ou entretanto sumida pelo capim que, num abrir e fechar de olhos, cobria galopantemente os últimos rodados das viaturas que por ali transitaram, assim aumentando desmesuradamente o nosso pânico por nos sentirmos encurralados e indefesos perante um eminente e possível ataque. Apanhados à mão, sem meios eficazes de nos defendermos ou termos para onde fugir, era a derradeira ideia macabra que nos poderia então ocorrer!...

Mas passado este difícil obstáculo, engrandecido indubitavelmente por razões do foro psicológico, logo aparecia o esperado rio Lifune, com as suas águas límpidas e cristalinas, correndo sob uma ponte de madeira, bem escorada e forte, por onde transitavam as pesadas viaturas do M.V.L. e as que carregavam o café da Fazenda Margarido, que aí começava.

Logo à entrada da roça de café e subindo do rio, encontrava-se uma casa toda esventrada, a que já caíra parte do telhado e de que tinham desaparecido as portas e janelas. Pelo aspecto que então ainda detinha, tratava-se por certo da casa de um europeu, com várias divisões feitas de tijolo e cimento, mas que a longa distância, a que se situava do núcleo da fazenda, não a tinha permitido resguardar dos sucessivos ataques desde que apressadamente fora abandonada.   

A roça estendia-se por alguns milhares de hectares de terreno, sombreado por grandes árvores que protegiam do calor tropical o pé do cafézeiro, sempre viçoso e delicado, cujos frutos se assemelham, quando na maturação, a pequenas cerejas vermelhas, encavalitadas aos magotes num emaranhado de ramos que se inclinam pesadamente até ao solo.

Na roça, como força braçal, trabalhavam essencialmente os bailundos, nem sempre em condições verdadeiramente humanas, ora capinando, de sol a sol, o capim que depressa alastrava e submergia toda a plantação, ora, quando se aproximava a colheita do café, esgalhando e ripando, fazendo-o com as mãos rudes e cheias de calos, os fugidios e lustrosos frutos vermelhos que, assim, caíam das pernadas prenhes do cafezeiro para dentro duma alcofa, dependurada ao pescoço, até encherem, individualmente, os dois enormes sacos de serapilheira, obrigatórios e diários, que no início de cada dia lhes eram distribuídos.

Para segurança e protecção da fazenda e do seu pessoal assalariado, dispunha o MARGARIDO de um corpo de Voluntários, muito temido pelos bailundos, e que era constituído por civis armados, normalmente ex-militares, que se comportavam como uma espécie de milícias mas dentro de um autorizado modelo paramilitar. Assim, meia dúzia destes homens bastava para manter a ordem e a paz nas sanzalas e no campo.

Habitava em instalações confortáveis a família do responsável pela roça, uma espécie de administrador/delegado do dono da fazenda, que a tudo superintendia, dispondo também de uma pista de aterragem, de um posto de rádio e duma cantina, tudo no cimo de um morro, rodeado de três fiadas de arame farpado, estando a intermédia electrificada.

Ao lado das sanzalas ficava a fábrica de descasque e de armazenamento do café, o qual, depois de colhido, era primeiramente posto a secar em amplos terreiros, pontualmente sulcados com rodos de madeira ou com os pés pelos bailundos, para melhor se obter uma uniforme secagem, após o que ia para a fábrica.

A zona onde se situava a fábrica e os armazéns do café era a parte mais sensível e vulnerável aos ataques do IN. Foi para obstar a tais ataques ou, pelo menos, minorá-los, que o meu Grupo de Combate, à semelhança do que já havia sucedido a outros, foi chamado a reforçar a força militar que aí se encontrava.

Mal a noite entrava, logo começava a “costureirinha” a cantar, umas vezes do lado em que o sol se tinha escondido, outras do lado oposto, quase sempre aleatoriamente mas sempre dentro da fazenda; era um jogo difícil de adivinhar, e raramente acertávamos, saber qual o local onde se iniciariam as hostilidades. Até que uma noite acertámos em cheio.

À tardinha, antes do anoitecer, fomo-nos emboscar cautelosamente na orla da mata, numa zona que indiciava ser trilhada pelo IN, acobertados pela densa vegetação que antecedia a roça e deixando, à nossa frente, uma vasta zona descoberta, onde pontuavam alguns pés de cafézeiros, rodeados por um capim algo ralo e já meio seco.

Decorridas cerca de duas horas após o pôr-do-sol, e quando as altaneiras e frondosas árvores da roça já espelhavam no chão figuras fantasmagóricas ondulantes, tecidas pelo suave luar que se deixava transparecer por entre a copa do arvoredo, começámos a ouvir, primeiro difusamente e depois de modo mais perceptível, um palavreado pouco incauto do IN, que se aproximava, ainda à vontade, do seu habitual objectivo – a fábrica.

À distância que passou por nós, ainda que relativamente perto, não foi possível visualizar o IN, quantificar os seus efectivos ou estimar o seu poder de fogo. Abrir fogo imediatamente seria atirar no escuro e denunciar a nossa presença. Por isso optou-se por deixá-los passar e aguardar serenamente pelo seu regresso, na suposição de que voltariam pelo mesmo caminho.

 Não eram volvidas duas horas, começou a ouvir-se, lá longe, para os lados da fábrica, o matraquear característico e inconfundível das armas inimigas, a que logo ripostaram as G3 e os pequenos morteiros 60, num duelo quase diário e nocturno, a que não faltavam os incitamentos de “portuga, vai para o puto, esta terra não é vossa!” e as asneiras e os costumados palavrões com que ripostavam os defensores.

Terminada a contenda, que habitualmente não passava de meras flagelações à distância, onde se desperdiçavam algumas munições e apenas tinham como finalidade manter as posições dos contendores, uns chateando e minando o moral do adversário e este, por sua vez, dando a entender que a fábrica se manteria na sua posse, o IN preparava-se para regressar pelo mesmo caminho.

Apanhado de surpresa mas sobejamente expedito nestas andanças, facilmente se furtou a um inesperado fogo nutrido, que então se abateu sobre ele, rapidamente se esgueirando por entre a mata e não deixando quaisquer vestígios de sangue que prenunciassem a existência de feridos, não tendo igualmente sido capturada qualquer arma.

Lourenço, ex-furriel da 3340.



Parabéns ao Camarada DU PIRES

O amigo Pires publicou hoje no Jornal de Notícias um artigo sobre o catorze de Março de 1973, aliás à semelhança do que já tinha escrito para o nosso blogue, que com o devido respeito pelo JN aqui publicamos:



Não deixem de ler o artigo do JN. o amigo Du Pires está de parabéns.